
O lado de dentro do casulo
Eram os anos mais saudáveis e de mais vitalidade da minha vida, ou, pelo menos, era isso que eu achava. Tinha 23 anos e começava a interagir com o mundo. Trabalhava com arquitetura e decoração e gostava do que fazia, mas confesso que não tinha paixão, entusiasmo ou dom, e ainda assim era algo que me seduzia, me alegrava.Em casa, outros desafios. Vivia uma crise conjugal e temia uma possível separação. O medo de encarar meus sentimentos me travava, mantendo-me no mesmo lugar. Sair da zona de conforto não era meu forte, nem meu objetivo. Aliás, esse talvez, fosse meu maior pavor.
Como muitas pessoas, preferia suportar as situações penosas e desagradáveis do dia a dia, conviver com elas, a mudar e partir para algo desconhecido. Controlar meus impulsos, meus sentimentos, controlar o movimento dos outros e do mundo ao meu redor: talvez este fosse o meu maior desejo.
Essa tentativa de controle tão intensa, feroz e inconsciente acabou por se transformar, e materializando-se de maneira muito forte. Eu, que queria controlar a vida, começava a ter sinais de que meu próprio corpo não podia ser domado.
Era o ano de 2006. Um dia, ao acordar, notei algo estranho. A visão periférica do meu olho esquerdo estava completamente borrada. Foi o primeiro sinal, e sem que eu sequer imaginasse, uma dolorosa saga teve início. Oftalmologistas, neurologistas, clínicos, exames, ressonâncias, tomografias... Em três meses minha vida transformou-se em visitas a laboratórios e consultórios médicos. E minha saúde só piorava.
O que começou como um desconforto no olho esquerdo logo ampliou-se para a perda de visão periférica dos dois olhos. Os sintomas se sucediam: sentia câimbras que podiam durar de duas a três horas seguidas, dormências pelo corpo, sensações de choque, ardência e tremor interno, rigidez dos membros, às vezes falta de reflexos, falta de coordenação motora e confusão mental.
Se em alguns dias o quadro era assustador, em outros dias, simplesmente não sentia nada. Vivia no descompasso da surpresa: um novo sintoma aparecia enquanto um outro estranhamente desaparecia. Buscava médicos ansiando uma resposta, mas ninguém dizia nada. Restringiam-se a prescrever doses cavalares de corticoides, mas nada explicavam. Após muita investigação, dores, desconfortos, finalmente uma médica apontou indícios de uma doença desmielinizante do sistema nervoso: esclerose múltipla.
A medicina sabe pouco sobre esta doença. Não há qualquer certeza quanto às causa, manifestações, muito menos quanto a tratamentos adequados. Terapias experimentais são realizadas há anos no mundo inteiro, sendo meras tentativas de controlar os sintomas, sem que se chegue à cura. Logo que comecei a pesquisar sobre o assunto e ouvir as explicações dos médicos, me dei conta da complexidade de sua complexidade. Os próprios médicos divergiam em seus discursos. Um dos maiores estudiosos da doença no Brasil definiu-a como inflamatória crônica, provavelmente autoimune. Por motivos genéticos ou externos, na esclerose múltipla, o sistema imunológico começa a agredir a bainha de mielina (capa que envolve todos os axônios) que recobre os neurônios, o que compromete a função do sistema nervoso.
Descobri algumas certezas, nada animadoras. A característica mais notável da esclerose múltipla é a imprevisibilidade dos surtos. De causas desconhecidas, em geral acomete jovens, entre 20 e 30 anos, atingindo mais mulheres e indivíduos de pele branca que vivem em zonas temperadas. Os sintomas e os chamados surtos variam, sendo comuns: perda ou excesso de sensibilidade, alterações na visão, problemas motores, fraqueza, dormência ou formigamento nas pernas ou de um lado do corpo, desequilíbrio, tremores, dificuldade de fala, respiração e controle dos esfíncteres. O diagnóstico é basicamente clínico, complementado por exames de imagem.
Diante dessa dura realidade, me desesperei. Era como uma sentença: chorei muito, mas não me entreguei. Sabia que não podia enfrentar tudo isso sozinha. Em plena crise conjugal, ajoelhei-me diante do meu marido e pedi que me ajudasse, que naquele momento não fosse embora, não me abandonasse. Num gesto de grande nobreza, Marcus colocou seus sonhos, desejos e crenças de lado e aceitou ficar comigo. Mais do que isso, tomou as rédeas da situação e começou a pesquisar, pela internet, pessoas e alternativas que pudessem me salvar.
Como os médicos não chegavam a um diagnóstico preciso, e percebendo que os tratamentos prescritos eram meros paliativos, e não ofereciam a possibilidade de cura, Marcus começou uma busca incessante de tratamentos mais eficazes e com chances reais de melhora. Entrou em contato com profissionais no mundo inteiro, e foi da Índia que tivemos a resposta mais alentadora: havia, sim, possibilidade de reverter meu quadro, mas a decisão deveria ser tomada logo. Conhecia a Índia, entendia um pouco daquela cultura, era um país que me fascinava. Mas nas condições físicas e emocionais que me encontrava, a perspectiva de uma viagem tão longa rumo ao desconhecido me aterrorizava. No entanto, aquela informação ficou bem guardada dentro de mim.
Continuei minha peregrinação em busca de resultados. Fui a igrejas e centro espírita. Consultei médicos e terapeutas das mais diversas linhas. Os meses iam passando e eu só piorava. Uma fadiga tomava conta de mim e em muitos dos dias eu mal tinha forças para andar. Às vezes passava tardes deitava, levantando só para ir ao banheiro ou à cozinha. Cãibras noturnas me arrancavam do sono, me fazendo trincar os dentes de tanto desespero. Era uma sensação terrível, como se os músculos das pernas e dos braços estivessem se rasgando. As juntas estalavam, truncavam, por vezes me paralisando. Mas dentre todos os sintomas, o mais assustador era a perda da visão, que ameaçava a cada dia. O tempo não era meu aliado, e um dia uma médica, especializada em esclerose múltipla, foi incisiva: “Laura, não tem mais como adiar. Vamos para o hospital providenciar sua internação para dar início à pulsoterapia.” Eu sabia o que estava por trás dessa palavra. Pulsoterapia é a administração de altas doses de medicamentos num curto espaço de tempo. Na esclerose múltipla, ela se faz com cortidóides. Esta possibilidade me alarmou. Temia os efeitos colaterais da medicação e temia mais ainda que, ao final, não houvesse nenhum resultado positivo. Ao medo profundo veio somar-se um desejo igualmente forte de cuidar de mim, de me curar.
Fechei a porta do consultório, olhei para o Marcus e disse: “Vamos para a Índia.” Fomos imediatamente para a agência de viagem, compramos a passagem e em menos de 24 horas embarcamos rumo ao país.
E foi aí que a minha vida começou a se transformar. O encontro com meu verdadeiro ser estava prestes a acontecer. Naquele momento eu era como uma verdadeira lagarta, em sua fase mais difícil, apertada, desesperadora, arrastando-me por caminhos tortuosos, limitada, achando que o mundo era apenas aquilo. Achava que passava por meus últimos momentos de vida, de sobrevivência, mas era apenas um intervalo forte e intenso que me transformaria.
Logo a lagarta aprenderia a voar como uma borboleta, passando a ver o mundo sob uma nova perspectiva, enxergando de cima o chão onde antes rastejava. Foi preciso sentir as dores do corpo e da alma, passar por um recolhimento, cuidar da minha mente, do meu espírito, para ver outras possibilidades e oportunidades, vislumbrar uma nova realidade. Nem melhor, nem pior, apenas diferente, mais consciente do meu ser, da minha existência, da vida em si.
Extraído do Livro : O Sabor da Harmonia – Receitas Ayurvédicas para o bem-estar - Editora Rocco
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